A Copa 2014 e a Casa da Mãe Joana
No século XIV, a rainha de Nápoles, Joana, após envolver-se em
conspiração para a morte do marido, fugiu e foi morar em Avignon, na França.
Lá, se instalou em um palácio e passou a mandar e desmandar na cidade, a ponto
de regulamentar até os bordéis. A partir daí, cada prostíbulo passou a ser
conhecido como “Paço da Mãe Joana”. No Brasil, a expressão foi alterada para
“Casa da Mãe Joana”, sinônimo de lugar ou situação em que predominam o
vale-tudo, a balbúrdia e a desorganização.
Associo a história à Copa. Desde 2007, quando o Brasil foi anunciado
como país-sede, venderam-nos gato por lebre. À época, o então ministro do
Esporte, Orlando Silva, afirmou: “Os estádios para a Copa serão construídos com
dinheiro privado. Não haverá um centavo de dinheiro público.” Na mesma linha, o
ex-presidente da CBF Ricardo Teixeira disse: “Faço questão absoluta de garantir
que será uma Copa em que o poder público nada gastará em atividades
desportivas.” O ex-presidente Lula confirmou: “Tudo será bancado pela
iniciativa privada.”
Se fosse verdade, ninguém criticaria as arenas de Manaus, Natal, Cuiabá
e Brasília — uma manada de elefantes brancos —, construídas pela iniciativa
privada, por sua própria conta e risco. Curiosamente, porém, a maioria dos empresários
não se interessou pelos estádios padrão Fifa. A fatura de R$ 8 bilhões, em sua
quase totalidade, caiu mesmo no colo da viúva.
Afirmar que a metade desse valor decorre de financiamentos que serão
cobrados com rigor pelos bancos é, no mínimo, uma falácia. Em sete arenas, os
próprios governos estaduais assumiram dívidas de R$ 2,3 bilhões com o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Sendo empréstimos
contraídos pelos estados, adivinhe, leitor, de onde sairá o dinheiro para quitá-los?
Outro sofisma é a comparação entre o custo dos estádios em 12 cidades e
os gastos integrais em Saúde e Educação, efetuados pela União, pelos estados e
por todos os municípios brasileiros, de 2010 a 2013. Com a intenção de tornar
irrelevantes os investimentos nas arenas, a presidente Dilma, às vésperas da
Copa, apresentou soma de R$ 1,7 trilhão, segundo ela “investida” em Saúde e
Educação, incluindo no montante, de forma inadequada, itens de custeio, como
vigilância, limpeza, salários, luz e água, entre outros. Na realidade, o custo
dos estádios equivale a dois anos de investimentos federais em Saúde ou à
instalação de 2.263 escolas.
Em contrapartida, boa parte das reformas dos aeroportos e do legado de
mobilidade ainda está pelo caminho. Para atenuar o caos urbano chegaram a ser
previstos R$ 12,4 bilhões. No entanto, cerca de R$ 4 bilhões simplesmente
sumiram da Matriz de Responsabilidades, visto que as obras não ficariam prontas
a tempo do Mundial. Das que restaram, apenas 43% foram concluídas, segundo o
TCU. Dessa forma, chegamos ao Mundial com o ônus dos elefantes brancos e sem o
bônus dos legados.
Até agora, ninguém sabe o custo real da Copa. No Portal da Transparência
constam R$ 25,6 bilhões, mas o valor — por sinal desatualizado — não inclui,
por exemplo, as verbas de publicidade, as estruturas temporárias, os centros de
treinamento e os subsídios à entidade presidida por Blatter, bem como às
empresas por ela indicadas.
Apesar de a Fifa ter obtido receitas de R$ 10 bilhões, o Congresso
Nacional concedeu-lhe inédita isenção total de impostos, correspondente a R$
1,1 bilhão. No pacote do perdão estão tributos federais como IRRF, IOF,
contribuições sociais, PIS/Pasep, Importação, Cofins Importação, entre outros.
Como a Fifa diz que não exigiu esse amplo favor, quem foi o mentor dessa
caridade com o nosso chapéu?
Enfim, a Copa 2014 será marcada por falta de planejamento, má gestão,
obras inacabadas, excessivas cidades-sede, desperdícios evitados pelo TCU (R$
700 milhões), denúncia de superfaturamento do “Mané Garrincha” (R$ 431
milhões), arenas entre as mais caras do mundo e repulsa à Fifa, entidade que
merece um “chute no traseiro”.
De qualquer forma, quando 72% da população estão insatisfeitos (Pew
Research Center), a Copa é apenas parte do contexto. As manifestações e as
vaias são consequência da inflação, da estagnação da economia, da péssima
qualidade dos serviços públicos e da corrupção deslavada. É bom lembrar que em
2010, na Copa da África do Sul, o ex-presidente Nelson Mandela foi ovacionado.
Como o protesto mais eficiente não é nos estádios, mas nas urnas, o
dever de casa para hoje será o Brasil vencer o México e avançar rumo à
conquista da Copa — a Copa da Mãe Joana.
Gil Castello Branco é economista e fundador da organização
não-governamental Associação Contas Abertas
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